Histórias pra boi dormir




2.5.07
quando o pescoço fez crack e o corpo caiu convulsivo no chão, sacudindo areia cinzenta, sentiu sua alma estremecer pela primeira vez em anos. a pressão oscilou, teve que olhar para o céu e engolir emoções contidas. o motivo nao era a morte da galinha, faça-me o favor. mas ver a luta do bicho pra se manter involuntariamente vivo, mesmo com o pescoço em migalhas, lhe trouxe de volta a idéia de que estava inteiro, e bem vivo. nos olhos do algoz não havia um único vestígio de dor, percebeu. e se sentiu mais seguro.




caia nesse clima estranho, de pensar em coisas absurdas e ouvir música arrastada. desejava estar atracado a um espesso e escuro iceberg de lama, sendo carregado aos poucos para um outro continente - áfrica, talvez. ansiava uma paisagem nova por dia, ou paisagem alguma. só queria dormir e ser carregado. uma vez na vida, que fosse.





30.4.07
Donalice balançava a rede quieta, mexendo a perna para ter mais impulso. Vez ou outra, ensaiava uma musica religiosa, mas nunca conseguia ir até o final. Preenchia os lapsos com uns tanananans sonolentos e arrastados. Era certo que sua voz iria se perder uma hora ou outra diante do pé direito altíssimo da casa antiga. Do outro lado da sala, separado pela meia-parede fina, J. observava uma antiga imagem de jesus cristo, difusa em empoeirada, com uns falsos brilhantes vermelhos encurstados na base. Nunca encarrou a imagem de verdade, mas desejava aquelas pedrinhas coloridas - e como desejava!

o tilintar de talheres anunciava a chegada do almoço. havia cheiro forte de carne de pato cozida e algo que parecia leite ou manteiga fervente - difícil dizer em meio à profusão de aromas que vinha lá do fundo. o primo deficiente grunhia em protesto à vida própria que cada parte do seu corpo havia assumido. as pernas pareciam querer fugir, cuitado, e os braços açoitavam-lhe as faces como se quisessem puni-lo por não libertá-los. ele o faria se pudesse, j. sabia.

j. sofria por estar lá. o cheiro forte de comida perturbava seu estômago. mas, curiosamente, não ansiava em voltar pra casa. nunca.