Histórias pra boi dormir




2.5.07
quando o pescoço fez crack e o corpo caiu convulsivo no chão, sacudindo areia cinzenta, sentiu sua alma estremecer pela primeira vez em anos. a pressão oscilou, teve que olhar para o céu e engolir emoções contidas. o motivo nao era a morte da galinha, faça-me o favor. mas ver a luta do bicho pra se manter involuntariamente vivo, mesmo com o pescoço em migalhas, lhe trouxe de volta a idéia de que estava inteiro, e bem vivo. nos olhos do algoz não havia um único vestígio de dor, percebeu. e se sentiu mais seguro.




caia nesse clima estranho, de pensar em coisas absurdas e ouvir música arrastada. desejava estar atracado a um espesso e escuro iceberg de lama, sendo carregado aos poucos para um outro continente - áfrica, talvez. ansiava uma paisagem nova por dia, ou paisagem alguma. só queria dormir e ser carregado. uma vez na vida, que fosse.





30.4.07
Donalice balançava a rede quieta, mexendo a perna para ter mais impulso. Vez ou outra, ensaiava uma musica religiosa, mas nunca conseguia ir até o final. Preenchia os lapsos com uns tanananans sonolentos e arrastados. Era certo que sua voz iria se perder uma hora ou outra diante do pé direito altíssimo da casa antiga. Do outro lado da sala, separado pela meia-parede fina, J. observava uma antiga imagem de jesus cristo, difusa em empoeirada, com uns falsos brilhantes vermelhos encurstados na base. Nunca encarrou a imagem de verdade, mas desejava aquelas pedrinhas coloridas - e como desejava!

o tilintar de talheres anunciava a chegada do almoço. havia cheiro forte de carne de pato cozida e algo que parecia leite ou manteiga fervente - difícil dizer em meio à profusão de aromas que vinha lá do fundo. o primo deficiente grunhia em protesto à vida própria que cada parte do seu corpo havia assumido. as pernas pareciam querer fugir, cuitado, e os braços açoitavam-lhe as faces como se quisessem puni-lo por não libertá-los. ele o faria se pudesse, j. sabia.

j. sofria por estar lá. o cheiro forte de comida perturbava seu estômago. mas, curiosamente, não ansiava em voltar pra casa. nunca.





16.10.03
carmina acordou com as mãos cheias de flores. olhou-as fixamente e saiu andando pela casa, sem entender direito o que se passava. balançou suavamente os braços e foi coberta por um manto de pólen perfumado. espirrou seis vezes. isso aconteceu bem em frente à porta da cozinha. naquela ocasião, eu estava escondido dentro da cristaleira e vi tudo. havia pétalas em seus cabelos. Sua voz, ao murmurar palavras indecifráveis, atraía abelhas.

a moça vestia uma longa camisola branca. por dentro, dava pra ver minhocas afofando a terra, preparando-se para fertilizá-la.

carmina estava morta. e tudo que lhe restava agora era tentar arrancar as flores que se enraizaram nos seu braços apodrecidos.





24.3.03
estou tão longe porque rasguei a pele e minha pele leva de cinco a dez estações para sarar. mas já posso mexer os dedos. oh, alegria!





28.1.03
hoje acordei
tão estranho
com pernas mecânicas
e um funil nas orelhas
pensei nos parágrafos
e fui inundado pelas livrarias
quanta informação, meu deus!
agora eu quero
um pouco de terra firme
porque nadar já não adianta
e os vermes não perdoam
viciei nos parágrafos
pequenos e azulados
meu, não pense que isso é poesia
nunca foi
espero que nunca seja
deus me livre se for algum dia
é apenas uma tentativa
de me livrar desse vício tolo
de escrever em sequência.





24.1.03
Descendo o morro, havia um pequeno fio de líquido vermelho. Dona Eulália, que mora a umas duas quadras da minha casa, viu e correu espantada, deixando pequenas frutas rosadas no chão. Achou que fosse sangue. Dona Eulália geralmente desamaia quando vê sangue. Tive que correr e lhe explicar, com o rosto manchado, que eu choro colorido quando me espetam alfinetes nas pálpebras.

E ouvi dizer que uma das cabeças das trigêmeas está moribunda. Mesmo deitado, em sono profundo, consegui tirar os olhos e grudá-los novamente na janela para tentar vê-las. Pobrezinhas, andam tão cabisbaixas. Coitadas! Ofereci-lhes o balanço por uma tarde inteira. Elas ficaram lá, balançando tão levemente que os galhos da mangueira sequer rangiam. A cabeça do meio virada pra trás, com os olhos entreabertos e um notável descontrole sobre os movimentos da boca. É tão triste, meu deus, tão triste...

Fiz uma pequena mesa com um copo de leite e bolachas vermelhas. Enfeitei com flores modestas e comi tudo. Até as flores. Agora tenho que aguentar essas abelhas tentando me abrir e sugar o néctar que agora é meu.





10.1.03
Des-Existi por alguns dias. Passei as festas de fim de ano lá em cima da mangueira infinita, absolutamente sozinho, observando os fogos de Sydney, Tóquio, Nova York, Rio de Janeiro e de algumas micro cidades africanas não identificáveis. Mas logo em seguida resolvi descer. Quase fui atingido por asteróides. Revi os percevejos, a colônia morta de cogumelos, pedaços de Ecila que ficaram por entre os galhos. Contei até dois milhões.

Quando estava chegando à altura do morro fui atingido por uma chuva que deixou os galhos escorregadios. Uma tragédia. Agora a minha pele reveste boa parte da mangueira. Eu e ela somos um só, involuntariamente.

Na casa, a velha descansava na sua antiga cama que hoje é minha. Ficou um tanto envergonhada ao me ver, mas logo desapareceu por entre as sombras, resignada. Não tive forças pra reclamar, apenas desabei e dormi.

Sonhei com o balanço.





23.12.02
Esse novo mundo multicolorido dentro de mim acabou por me deixar entediado. Os insetos falam demais! Como podem ser tão barulhentos? Passam dia e noite aprontando festas, saraus e orgias intermináveis. Foi divertido nos primeiros dias, mas logo depois me cansou severamente. Pacientemente, esperei até que os louva-deuses nascessem, expulsei um a um e resolvi tagarelar o máximo que pude, para compensar esses dias de silêncio obscuro. Conversei muito com a velha, que andava um tanto sumida, cochilando entre as brechas das madeiras ou pensando no balanço.

Conversar com fantasmas também não é algo que divirta a longo prazo. Eles reclamam muito, principalmente das dores que não sentem mais. Cansado, resolvi escalar a mangueira infinita mais uma vez. Ainda mais longe do que fui na última vez. Dessa vez, preparei-me com um bom estoque de comida, cobertores e água. Subi, subi, subi, subi. Passei por onde havia acontecido a chacina de cogumelos falantes, há algumas semanas. Coitados! Nem vestígio deles. Fui muito bruto naquele dia, nem quero lembrar. Deparei-me com uns percevejos formais um pouco mais acima. Mas eles, muito bem articulados, deixaram-me passar sem me atingir com sua saliva fétida. Acenei e servi um pouco de melado de cana e feijão.

Passei três dias escalando. O frio estava muito abaixo de zero, o ar era irrespirável. Como eu já tinha o mundo inteiro dentro dos pulmões, não foi um grande desafio pra mim. As cidades eram minúsculas manchas nervosas lá, lá, lá embaixo.

Alguns galhos mais acima, encontrei uma aeromoça chamada Ecila. "Não sou aeromoça, e sim comissária de bordo", corrigiu-me. Ela havia escapado de um avião em chamas, que caiu no mar há muito, muito tempo. Ecila é bonita e seus cabelos negros enroscam-se nos galhos como se fossem trepadeiras. Recitou-me os protocolos de vôo e recolheu-se à casa que havia montado ali, feita da casca seca de uma manga gigante. Ecila dormia de cabeça pra baixo e agarrava-se aos galhos com suas garras afiadas.Estava ali há algum tempo, penso eu, mas não me atrevi a revirar suas lembranças.

Acomodei-me em uma folha e a observei. Ela é sonâmbula! Quando tomada pelo breu da noite, cria enorme asas de besouro e percorre toda a extensão da mangueira infinita, de cima a baixo, da raiz aos galhos além-olho. Só Ecila sabe onde o infinito acaba. Ela é sábia porque se alimenta das mangas gigantes.

Ah, as mangas gigantes brotam fartamente aqui. Têm a altura de três homens e sua casca é rígida como madeira. Ecila mora dentro de uma delas, onde é quente, confortável e tem paredes doces e carnudas. O amarelo de sua polpa é tão exuberante que, em dias de sol forte, são capazes de incendiar a visão.

Quando Ecila acorda, tem vonrtade de voltar para o mundo lá embaixo, mesmo sem saber que passeia por lá todos os dias. Ecila chora, chora, chora. Agora descobri porque todo dia chove muito forte lá no morro. A chuva salgada são suas lágrimas.

Falei a Ecila de suas asas de besouro, mas ela não quis ouvir. Comemos pedaços de manga gigante e dormimos. Ela de cabeça pra baixo e eu na folha.

De manhã, Ecila estava na borda de um dos galhos, olhando pra baixo. Antes que eu pudesse dizer alguma coisa, ela saltou na esperança de que suas asas surgissem e lhe levassem com segurança até lá embaixo. Vi o seu corpo silencioso perder-se por entre as nuvens. Mal sabe ela que as asas são presente do sono. O mundo lá embaixo não tem muito a oferecer, Ecila.

De repente sinto um silêncio assombroso aqui.
Quero descer.





















16.12.02
Dormi quatro dias seguidos de boca aberta. Aspirei todo o ar antigo do porão. Certa vez uma cigana vesga, cujos cabelos tinham mais de 400 quilômetros de extensão, me disse que em cada partícula do ar há um vestígio da história do mundo. Portanto, tenho todo o universo em meus pulmões agora.

Durante o tempo em que hibernei, pequenas aranhas brancas construíram teias sedosas em minha boca, que iam dos dentes ao céu da boca. Alguns insetos inocentes se debatiam nela. Na garganta, incontáveis casulos de louva-deus. As libélulas se divertiam no estômago e no intestino. Tentei falar alguma coisa, mas o som da minha voz espantou as borboletas miúdas que se escondiam entre as gengivas. Como eu não queria que elas fossem embora, permaneci calado. Agora há vida dentro de mim.

Não estou mais só.





9.12.02
Hoje foi um dia árduo de faxina e - modéstia à parte - sou bem empenhado nesses assuntos. Fiquei feliz ao saber que a casa velha tem um grande estoque de artefatos de limpeza: vassouras, pás, aspiradores, espanadores... todos empilhados lado a lado, como se fossem cadáveres numa sala refrigerada. Mas aqui no porão faz calor e é úmido. O paraíso do mofo. Orgasmo das traças. Epifania das baratas.

Havia uma vassoura que me chamou particularmente a atenção: grande, robusta, de palha antiga, daquelas que só se via antigamente. Usei-a e fiquei satisfeito com o seu poder. Lambia o chão e o fazia lustrado. Pude ver meu rosto através da madeira opaca. Você já viu seu rosto através de uma madeira opaca? Nem tente. É terrível. As madeiras mostram como você vai ser daqui a cem anos. Todas elas. Basta forçar a vista e esperar o choque. Já estarei morto em cem anos. Queria poder viver uns oitocentos, pra poder aprender tudo pacientemente. Mas não. Devo estar embrulhado em alguns anos apenas. Sou curto. Tenho vida limitada.

Varri, lustrei, deitei no chão com o nariz pra baixo. Olhei pra vassoura. Ela mexeu! Arrastei-a comigo até o quintal e lhe fiz um agrado. Voamos. Nunca pensei em ser bruxa de fábula, mas quando desatei no ar em cima daquele objeto terrível, senti uma liberdade incrível. As trigêmeas estavam lá embaixo, espetando arame farpado em um gato recém-nascido. Sem pensar duas vezes, abri o zíper e mijei copiosamente em cima de suas três cabeças loiro-brancas. Elas choraram e engoliram minha urina corrosiva. Correram para a mãe gorda e me acusaram. Mas quando vieram tomar satisfações, eu já estava em casa, flutuando no balanço. Claro que a imaginação das crianças é fértil, dona Eronilde - expliquei. Até na hora de simular o cheiro do xixi.





6.12.02
Desde ontem estou desnorteado. O barulho dos cogumelos bagunçou minha razão. Tudo o que eu ouço é um superlativo barulho do mar. Shhhhhhhhhhhh. Zuuuuuuuuuuuummm. Tenho orelhas-conchas. Estou aguardando o momento em que as patinhas sairão dos fundos dos meu ouvidos e tentarão ganhar o mundo. Serei virado de cabeça pra baixo e dividido em dois. Duas orelhas-conchas, dois crustáceos e dois meio-corpos carregados involuntariamente. Cada um em uma direção diferente.





5.12.02
Assim que o sol caiu eles começaram a chegar. Fui lá fora ver o que se passava. Homens, mulheres, crianças e as trigêmeas berravam em frente ao meu portão. Foices, enxadas e até talheres nas mãos. Acusavam-me de proteger os cogumelos falantes que se instalaram nos galhos além-nuvens da mangueira plantada no quintal. Senti o bafo ácido do ferrugem na garganta. Queriam me ver sangrar até a morte. Ou me ver escalar os galhos infinitos da mangueira. Como tenho um relativo interesse pelo mundo, decidi subir.

Comecei a escalada às 8 da noite. Subi, subi, subi. Em três horas estava além das nuvens. Mais quatro e as nuvens já eram tufos rosados, iluminados pela neurose da cidade que ficava muito mais lá embaixo. Descansei e driblei insetos fedidos. As vozes dos cogumelos ficavam cada vez mais altas e estridentes. Mais duas horas de barulho intenso. Por instantes pensei que fosse explodir. Ora pelo ar rarefeito, ora pelo frio de temperatura negativa, ora pelo timbre dos cogumelos, que continuava a se acentuar. Passou um avião um pouco abaixo de onde eu estava. Desviou alguns galhos e continuou sua rota nos céus. Eu continuava que nem um coala agarrado aos galhos. Vozes, vozes, vozes. Eles falavam sem parar. Uma boate ensurdecedora nos céus. Lá embaixo, bem lá embaixo, a cidade, o morro, a expectativa. Mais um pouco e eu alcanço os malditos.

Dito. Feito. Agarrei o primeiro pelo talo. Todos gritavam aterrorizados, em uníssono. Vi uma pequena boca branca, enrugada, na superfície do cogumelo. Não havia dentes. Vozes desdentadas, desembestadas. Enfiei o dedo com tanta força naquela pequena boquinha persistente, que o cogumelo se amassou como um pudim. Morreu. Caiu. Calou-se. E assim foi, um a um. Uma morte lenta e propositadamente dolorosa. Moídos, caídos, calados. Vinguei-me, fiquei feliz em ter o poder da morte em minha mão. Nem que fosse para matar aqueles parasitas impertinentes. Talvez a mangueira quisesse me matar também. Bastava que para isso, abrisse mão de um dos seus galhos infinitos. Não tentaria me agarrar, não mesmo. Depois da matança, me dei ao luxo de um descanso. A cidade acordava lá embaixo. As nuvens sumiram, foram para alguma festa em outro lugar.

Estava tão alto que pude ver o mundo todo. Lá ao longe, as muralhas da China faziam um "S". Um pequeno vapor de água se debatia no horizonte. Eram as cataratas do Niágara. Vi os Montes Urais e o Everest. Havia baianas preparando alguma comida esquisita. Uma mulher nórdica quase foi atropelada na Noruega. Olhei pra cima e a mangueira ainda se estendia até onde a vista não alcançava. Deve prover frutas aos anjos e demônios que habitam o além-olho do nosso imaginário. Tentei respirar. Difícil. Rarefeito-raro efeito. Melhor descer. Aqui é mais divertido que no balanço.





1.12.02
Pintei olhos no vidro da janela para ver se consigo enxergar melhor o mundo lá fora. Mas a tinta é opaca e tudo que eu vejo é uma profusão de massa branca, veias, verde-selva e o buraco negro das minhas pupilas querendo sugar o universo para dentro de si. Os homens sobem-descem. E agora a casa tem sete olhos.





29.11.02
Sim, era ilusão. Não terei um verão sossegado. Nasceu uma colônia de cogumelos falantes em um galho tão alto da mangueira que nem se eu escalasse até o céu conseguiria alcançá-los. E como falam essas pestes! Sem parar! Sem parar! Sem parar! E não pense que é uma voz doce, ponderada. É agudo, acre, dolorido.

Malditos cogumelos! Agora onde vou arranjar uma ave-chef francesa para capturá-los? Preciso de um copo de paz.




Resolvi fazer as pazes com o balanço e ontem fui lá, encontrá-lo. Novamente sentei, fumei, mas dessa vez não olhei para o pequeno rego nem para a areia. Estava aéreo. Mirei as nuvens que passavam apressadas, como se corressem pra formar uma tempestade de última hora. Há algo de humano nas nuvens. Ou há algo de nuvem nos humanos, não sei. Elas sabem desenhar. Ou será que a gente é que sabe representar nuvens? Bom, não repare em mim hoje. As coisas estão parecidas demais esses dias...

Voltei ao balanço porque a velha finalmente resolveu desocupá-lo. Tudo bem, ela é a dona da casa, tem direito de usufruir dele. O que me incomodava era o barulho de galhos rangendo a noite toda, tentando sustentar o peso daquela mulher gorda, despenteada e desencarnada. Não sabia que fantasmas eram tão pesados. Até achava que flutuassem. Mas não, eles são quase tão físicos quanto nós. Não gostei de saber disso, porque tinha ideais felizes para minha vida post-mortem.

As trigêmeas viajaram para algum balneário de verão. Pelo menos foi o que Don'Edite me falou ontem. Vou ter um longo e quente verão sossegado. Ou será que estou me iludindo?





24.11.02
Hoje eu também ouvi violinos. Viu?




On-Off.

Off.

Desliguei-me da vida ontem, hoje, anteontem. Só o teto e o barulho do vento. Houve tiros e vi sangue correndo rua abaixo, mas foi rápido. Espiei pela janela e voltei pra cama. Pensei na dor da Alice. Aquele seu e-mail me deixou tão atordoado que nem sei como respondê-lo. Pensei em uma você imaginária, deitada. Frida Kahlo das palavras. Colhi tomates, dei algumas mangas a Don'Edite mas recusei sua visita hoje. Só o teto me interessa. Algumas aranhas avermelhadas se atrevem a montar uma teia onde meu olho paira. Vai durar pouco esse lar de seda. Tomara que elas saibam. O balanço tá lá, parado. O rego de água servida não corre porque não uso a pia para lavar roupas. Uma musiquinha triste nasce aqui perto. Tem violinos. Quem não gosta do som do violino? Som de infância, de correria, de despreocupação.





19.11.02
O Capitão Munhoz era um daqueles homens austeros, cheios de vitalidade, que exalava testosterona. Em mil novecentos e cinquenta e poucos casou-se com Dona Rita Amaral e teve quatro filhos saudáveis e robustos. Costumava ostentar medalhas de honra da marinha brasileira até quando ia comprar pão. Homem de voz forte, busto largo, barba cerrada. Todo mundo tinha medo dele. Tinha. Hoje o Capitão Munhoz é um homem minguado, magro, abatido. Chora quando alguém pergunta por Dona Rita, que morreu atropelada pelo caminhão de lixo, no ano passado.

Capitão Munhoz é maneta. Perdeu a mão quando meteu-se a operar as máquinas de um navio em uma emergência. Teve os ossos e a carne esmagados nas engrenagens. Graxa cor de púrpura, recheada de fragmentos brancos para as máquinas sedentas. Depois desse evento, aposentou-se por invalidez e veio com a mulher morar no alto do morro. Talvez pra ficar distante do mundo que o olhava decepcionado. Depressão, depressão. Tentativas vãs de suicídio. Dona Rita era muito forte, sabia domar o marido, transformá-lo num menino obediente. Mas Dona Rita se foi, carrregada pelo caminhão de lixo. Os filhos do Capitão estão ocupados em obturar dentes ou recitar palavras difíceis nos tribunais. Não lhe dão atenção. As medalhas e a alma do Capitão enferrujaram. Sua voz já não assusta, seu busto largo afrouxou e sua barba é um ninho branco de aspecto desagradável. Mora sozinho, numa casa modesta mas bem equipada. Capitão me pede sempre para dirigir seu carro, levá-lo ao centro, ao norte, à praia. Levo ao norte físico quem já nao tem norte emocional. Capitão me paga ostras, cervejas, e me distrai com suas histórias de mar, de sereias, de desastres.

Ah, as sereias...





14.11.02
Tomei um ônibus e fui até o centro. Gosto dos centros, do clima das ruas, das pessoas apressadas e dos ventos históricos que sopram por lá. Dizem os mais velhos que antes era tudo água, que era algo bonito de se ver. Daí veio um homem muito gordo morar aqui na ilha. Naquela época havia uma escassez grande de alimentos e para saciar sua fome infinita, o homem - um nobre cortês - comia tudo o que via pela frente. Gaivotas, arame, carcaças... nada escapava àquele apetite. Como resultado, passou a expelir areia. Foi essa areia que praticamente aterrou a ilha inteira, transformando-a num mini-continente. Hoje vivemos sobre um monte de bosta e entoamos cantigas bonitas sobre a beleza do lugar. Merda petrificada.

Fui na igreja. Também gosto de igrejas, dos pecados grudados na parede e das pessoas redimidas, ajoelhadas frente a entidades de gesso que guardam o segredo mais imundo dos homens.





12.11.02
Ah, antes que eu me esqueça: estou num período "coisofágico". Tenho vontade de comer qualquer coisa que me provoque alguma reação positiva.




A Don'Inspiração saiu pra passear. Não sei se volta hoje. Nem sei se volta, na verdade...




Consegui as cordas, a madeira e a coregem para subir na mangueira e instalar um balanço. Os galhos são muito altos e dispersos. Tive umas vertigens, mas consegui fazer a gambiarra. Não sei se gosto de alturas ou de arriscar tanto a minha embalagem corporal já tão detonada. Mas agora já foi. E valeu a pena. Terminei de montar o balanço às 8 da noite. Ainda tava claro. Sentei e fiquei flutuando lá até as três da manhã. Fumei, pensei, observei o vai-vém do pequeno rego de água servida que cruza o meu quintal. Depois, fiquei tanto tempo de cabeça baixa, fitando a areia escura do quintal, que hoje acordei com uma baita dor na coluna. Agora tenho um novo santuário onde dispensar minha energia: um balanço magnífico, engatado na mangueira gigante, com vista para o rego de água servida e para a areia do quintal.

Caiu uma manga na calçadinha ainda há pouco. Semi-verde. O leite escorreu por alguns minutos e ressecou rápido. O cheiro do leite da manga me faz lembrar os tempos de infância, das guerras de rua. Tô pensando em povoar o quintal com alguns patos ou com terríveis galinhas de pescoço pelado.





11.11.02
Tá, faz uma semana desde o último post. Nada de mais. Andei ocupado esses dias e tenho preguiça de conectar à internet. As paredes analógicas da minha casa tem muito mais história do que toda essa rede mundial. E os fantasmas são reais, ninguém se esconde atrás de um nick. Ei, o que estou dizendo? Eu sou o mais anônimo da internet.

Bom, vamos aos fatos que marcaram a semana: ...

Acabei de me lembrar de que nada marcou essa semana. Ocupações rotineiras apenas.

Só alguns fatos curiosos. No sábado dormi com a janela aberta. Pude ver dragões se transformarem em suculentas melancias e rostos assustados se dissolverem com o vento. Muito divertido observar as mutações das nuvens. Aqui no morro elas estão mais perto. Às vezes descem tão baixo que dá pra gente se perder no meio delas, brincar que vive em Londres. Várias vezes acordei pensando estar no meio de um incêndio, mas quando saía para verificar, percebia que era apenas uma dessas nuvens preguiçosas que preferem passar seus últimos dias aqui deitadas, observando o mundo junto com os mortais.

As trigêmeas foram à missa ontem bem cedinho. Eu estava acordado e vi. Usavam sapatos de porcelana e estavam orgulhosas disso. Caminhavam tão devagar e com tanta cautela que por um segundo até senti uma certa simpatia por aquelas três cabeças num corpo só. Infame. Elas são apenas danadas demais. Quando a breve simpatia passou, desejei que aqueles sapatos se quebrassem em mil pedaços e penetrassem na carne fina dos seus pés.

Don'Edite veio hoje cedo, como é de praxe. Trouxe roupinhas bordadas para o meu liquidificador, meu botijão de gás e minha batedeira. Na estampa, animais, flores e frutas tortas. Falei que não tinha batedeira. Don'Edite insistiu para que eu ficasse com o presente, o que fiz de bom grado. Adoro Don'Edite.




De semana em semana esse blog enche o papo...





4.11.02
Don'Edite veio aqui hoje. Trouxe um pão de milho caseiro e nata. Me fartei e até lambi os beiços. Brilho noz'olhos. Don'Edite é boa de papo. Tem um marido fuleiro, cachaceiro, e um filho homossexual daqueles que sonham em ser a Mariah Carey. Don'Edite é até bem humorada, diz que gosta de mim e me faz uns mimos vez'emquando. Don'Edite é carioca, tem uns 60 anos mas mora aqui no morro há uns 30, acho. Deve ter fundado esse cortiço aqui. Carioca gosta de morro, viu? Don'Edite me contou umas fofocas das boas, envolvendo as bruacas que são suas vizinhas. Nem pude rir direito porque tava com a boca atolada de pão e nata. Don'Edite animou minha segunda-feira morta. Don'Edite me convidou pra almoçar, mas aí achei que seria muito abuso da minha parte. Recusei educadamente. Na real, tô a fim de comer miojo mesmo. Cê já conheceu alguém que goste de miojo voluntariamente? Eu gosto. Do molho de pozinho também. Corto umas (uns?) tomates e pronto! Ceia natalina. Don'Edite, pão de milho, nata, miojo, tomate colhido do pé. É, a segunda-feira vai bem, obrigado.





1.11.02
Por que não chove? Deveria chover! O mar tá da cor do céu. Cinza e não azul. Encoberto. Daqui da minha varanda enxergo tudo. O mundo é menor do que você imagina, pode acreditar. Minha casa de madeira, meus tomates, minhas mangas, meus fantasmas e demônios. Estou obcecado pelas minhas conquistas. Só falo nisso, só vivo isso. Só tenho a eles, e eles a mim. Gosto de blogs, mas não gosto das pessoas que não falam de si. Blog é a impressa do ser. Despejos, vômitos, desejos. Vou descer pra pegar um ônibus daqui a pouco. Vou me despedir da dona da casa - a morta. Percebi que ela passa o tempo inteiro me vigiando. As trigêmeas foram embora rapidinho, não me atormentaram por muito tempo. Elas desconcertam. Eu tenho que ser gentil com as crianças? Não. Elas são umas pestes e não lamentaria se as encontrasse mortas, estendidas debaixo de um caminhão. Três cabeças e um corpo... ultrajante!




Ontem passeei a tarde inteira pelos jardins do purgatório. Colhi umas violetas desbotadas, conversei com corvos estridentes, bebi líquido amniótico e me abracei a estátuas anônimas. Não sei se isso é normal num halloween, nem quero saber. Em dias assim eu não sei o que fazer comigo durante o dia, durante a noite. Sou um caso perdido, ana t (única leitora).

Antes de dormir, vi três cabeças na janelas, soprando e desenhando no embaçado breve que ficava no vidro. São aquelas malditas trigêmeas de novo. Três cabeças embutidas num corpo só. Não sei porque elas vivem rondando a minha casa, mas se eu tivesse uma metralhadora, descarregaria inteirinha na testa delas.




Passei esses dias remontando a casa em que tô morando. Muita sujeira, muita poeira, muitos demônios escondidos debaixo da cama. Lembra do galpão que eu achei? Pois é, tô me mudando pra lá amanhã, porque tem muito mais personalidade que o meu quarto atual. E não tem janelas, o que é muito positivo. Sem falar que, se eu trancar a porta, posso passar despercebido caso um ladrão resolva invadir uma casa que não guarda nada de valor.

Mas voltemos ao porão. Quando eu tava limpando os cocôs de cachorro ressecados e tirando a poeira do armário, encontrei uma caixa velha. Tava cheia de peças de ferro retorcido, enferrujado. Ao que me parece, são (eram) peças de carro usadas. Joguei tudo fora, menos a pequena fotografia que tava dobrada junto àquele monte tralha velha. Uma menina-moça de lábios escuros. A foto é preto-e-branca, tem muito contraste, mas dá pra perceber claramente que era a antiga dona da casa. Tem uns escritos com letra rebuscada atrás, mas não dá pra entender o que é. Uma dedicatória, provavelmente. A foto tá meio desbotada, deve ter sido molhada pela mesma goteira que detonou as peças automotivas. Não sei porque venho encontrando tantos objetos que me trazem de volta ao passado dessa casa. Coisas encravadas, perdidas, soterradas vêm à tona com um simples movimento meu. Anteontem, passeando pelo quintal, resolvi colher uns tomates. Me agachei para colhê-los e, num desequilíbrio mínimo, apóio minha mão no chão. Bem em cima de um pequeno machado de cabo apodrecido e lâmina alaranjada. Melhor, mais uma ferramenta pra mim. Mas que é engraçado/estranho, isso é...

Bom, depois de colher alguns tomates pro almoço, subi no telhado pra consertar a tal goteira do porão. Encontro três dentes-de-leite pequeninos, fininhos, desgastados. Sei que existe aquela superstição que diz para as crianças jogarem seus dentinhos recém-caídos no teto para que a fada do dente possa pegá-los e trazer um novinho em folha. Tá, coitada das crianças, devem ter crescido banguelas porque a tal fada realmente não apareceu. Ou talvez eu seja a fada do dente, mas não tenho nenhum dente novinho para entregar assim, de bandeija pra alguém. Logo, procurem suas dentaduras, pobres ex-crianças ingênuas.





18.10.02
Se eu soubesse mexer em agátêêmeéle, colocaria aquelas caixinhas de comentários no meu blog. Mas como sou um jumento lidando com essas coisas, me conformo com um mero link de e-mail lá em cima, que ninguém vê. Tonho me falou que a galera que visita essas coisas de blog não tem muita paciência de enviar e-mail não, que dá um trabalho danado, carregar outlook etc. Eu também acho, já que nunca enviei uma mensagem pra ninguém via blog. Um ou outro comentário, talvez, mas só quando algo chama realmente a minha atenção. Mas então fiquemos assim: você não fala, eu não falo e a gente fica se desejando anonimamente para sempre. Mas se você perguntar, eu vou responder: sim, eu me sinto isolado!




Não imaginei que o tesão fosse durar tão pouco. Menos de 24 horas, pelos meus cálculos. Anteontem eu comecei, ontem escrevi sedento, hoje nem me lembrei de que o blog existe. Que fracasso!





16.10.02
Só depois que acordo e dou um "reload" nas minhas baterias mentais, percebo o quanto os textos abaixo estavam ansiosos. Eu estava ansioso. Eu e meu texto estávamos ansiosos. É diferente escrever para fora, pros outros. Estou acostumado com meus diálogos internos, minhas confabulações, pirações... tudo dito, discutido e arrotado dentro de mim.

Meu nome é composto. Dizem que pessoas com nomes compostos têm personalidade dupla. Pois é. Eu converso com vários eus e eles me entendem com mais facilidade do que as letras que eu consigo digitar. Engraçado que sempre no período pré-sono eu fico imaginando umas metáforas legais, que poderia colocar aqui e seria interessante, mas quando eu sento em frente à máquina, esqueço de tudo. Será que a tecnologia cega? Vou pensar nisso.

Ontem fui à praia. Lembro da minha sobrinha falando nao-sei-o-quê e das pegadas na areia. Sempre achei pegada algo tão cafona. Pé é um negócio esquisito, né não? Hoje minha inspiração acordou abaixo da linha do horizonte. Só tenho forças pra falar banalidades... melhor ir comer alguma coisa ou alguém...




uma coisa é certa: há um demônio em cada um de nós.





15.10.02
Queria retomar o assunto da casa. Não repare, é que estou muito empolgado com meu novo muquifo. Tipo, o aluguel é barato, o lugar é estranho - estranhíssimo, aliás - e a casa, nossa, parece saída de um filme de terror baba dos anos 70.

É toda em madeira. Na entrada há um jardim morto, retorcido, estéril. Já prometi a mim mesmo cuidar daquilo ali quando tiver um tempo. O teto é repleto de telhas e vigas. Não há forro. As aranhas se multiplicam. As telhas da parte de trás, aliás, quebram com frequência por causa das mangas que caem da mangueira centenária que existe no quintal. Há um tomateiro amontoado perto do muro do vizinho. Ainda dá frutos, apesar de estar quase morto. Há muito cocô de morcego pelas paredes. O rapaz que me alugou o imóvel falou que aquilo tudo pertencia à sua avó, morta em 1996 por uma doença esquisita, da qual não lembro o nome, mas que causava paralisação dos músculos e matava aos poucos. Diz ele que a velha morreu sozinha ali onde é o meu quarto. Eu sou o primeiro morador desde então. Não posso negar que o clima aqui é estranho. Tenho medo em determinadas horas, quando pintam uns barulhos esquisitos, umas vigas rangendo ou uns gatos fazendo farra no meu teto. Mas quer saber? Essa casa é um dos poucos lugares realmente com personalidade que pude encontrar numa cidade tão pequena quanto essa. A vista é bem interessante, já que fica tudo na subida do morro. Vejo passar carros, pessoas, animais... fumo meu cigarro sentado no banco de madeira que tem na varanda. Ligaram meu telefone há poucos dias. Gastei uma grana pra renovar os fios, tubos etc.

Melhor parar de escrever e voltar a conversar com os meus fantasmas. Desconfio de que eles são um tanto impacientes quando não lhes dou atenção. Bom, não se deve brincar com essas coisas, né? Então vou voltar lá pro meu quarto recém-descoberto. Meu tio já foi embora.




Ok, mas vamos ao que interessa então...

Bom, acho que eu deveria colocar um e-mail aqui. Depois vejo isso. Ninguém vai conhecer meu blog hoje mesmo... Ainda há pouco tomei um grande susto ao descobrir que existe mais um cômodo na minha casa recém-alugada. Um espaço enorme, vizinho ao meu quarto. Achei quase sem querer, pois inventei de tatear a parede de madeira em busca de cupins e enfiei o dedo numa fechadura minúscula. Forcei um pouquinho e a porta cedeu. O espaço é maravilhoso, pena que ainda está muito sujo. Tem um balcão grande, que vai de uma parede a outra, cheio de tralhas enferrujadas em cima. Muita poeira, meu Deus, muita poeira. Muito cocô ressecado de cachorro também. Aliás, não sei como os cães conheciam aquele cômodo e eu não. Há uma fresta na parede que dá pra ver a goiabeira da vizinha. Tem um aparelho telefônico no chão, cor de chumbo, modelo bem antiquado. Um escorredor de prato relativamente novo em cima do balcão revela que passou gente por lá há pouco tempo. Há um clima meio estranho sim, quase demoníaco naquele lugar. Pensei que seria ideal para dar festinhas, mas logo vi que as paredes são finas e iria dar mote para os vizinhos reclamarem.

Depois que chequei o lugar, fui fumar no quintal. Meu tio estava deitado numa rede minúscula, estendida entre uma árvore e outra. Ele estava completamente nu e falava algo sem sentido. Ignorei. Fiz uma concha com as mãos para tentar manter o isqueiro aceso e puxei com força a fumaça para dentro de mim. É fantástico sentir o efeito negativo do cigarro dentro dos seus órgãos. Fumar é como andar numa corda fina, pendurada entre dois prédios. Tá, a analogia é fuleira, mas foi inspirada na rede do meu tio, ok? Queria lançar um livro: analogias instantâneas de quintal. Quando meu tio percebe que estou ali, se levanta e vem falar comigo. Ele já está velho, mas conserva ainda uma beleza juvenil, um ar quase moleque, maquiado pelas rugas e cabelos grisalhos. O que obviamente não lhe tira o brilho. Tio sérgio é muito espontâneo com o próprio corpo. A nudez para ele é um mero detalhe.




Talvez um pouco atrasado em relação aos demais, mas nunca é tarde para começar...

... que venha o blog então. Histórias pra Boi Dormir.