Histórias pra boi dormir




30.4.07
Donalice balançava a rede quieta, mexendo a perna para ter mais impulso. Vez ou outra, ensaiava uma musica religiosa, mas nunca conseguia ir até o final. Preenchia os lapsos com uns tanananans sonolentos e arrastados. Era certo que sua voz iria se perder uma hora ou outra diante do pé direito altíssimo da casa antiga. Do outro lado da sala, separado pela meia-parede fina, J. observava uma antiga imagem de jesus cristo, difusa em empoeirada, com uns falsos brilhantes vermelhos encurstados na base. Nunca encarrou a imagem de verdade, mas desejava aquelas pedrinhas coloridas - e como desejava!

o tilintar de talheres anunciava a chegada do almoço. havia cheiro forte de carne de pato cozida e algo que parecia leite ou manteiga fervente - difícil dizer em meio à profusão de aromas que vinha lá do fundo. o primo deficiente grunhia em protesto à vida própria que cada parte do seu corpo havia assumido. as pernas pareciam querer fugir, cuitado, e os braços açoitavam-lhe as faces como se quisessem puni-lo por não libertá-los. ele o faria se pudesse, j. sabia.

j. sofria por estar lá. o cheiro forte de comida perturbava seu estômago. mas, curiosamente, não ansiava em voltar pra casa. nunca.