Histórias pra boi dormir




23.12.02
Esse novo mundo multicolorido dentro de mim acabou por me deixar entediado. Os insetos falam demais! Como podem ser tão barulhentos? Passam dia e noite aprontando festas, saraus e orgias intermináveis. Foi divertido nos primeiros dias, mas logo depois me cansou severamente. Pacientemente, esperei até que os louva-deuses nascessem, expulsei um a um e resolvi tagarelar o máximo que pude, para compensar esses dias de silêncio obscuro. Conversei muito com a velha, que andava um tanto sumida, cochilando entre as brechas das madeiras ou pensando no balanço.

Conversar com fantasmas também não é algo que divirta a longo prazo. Eles reclamam muito, principalmente das dores que não sentem mais. Cansado, resolvi escalar a mangueira infinita mais uma vez. Ainda mais longe do que fui na última vez. Dessa vez, preparei-me com um bom estoque de comida, cobertores e água. Subi, subi, subi, subi. Passei por onde havia acontecido a chacina de cogumelos falantes, há algumas semanas. Coitados! Nem vestígio deles. Fui muito bruto naquele dia, nem quero lembrar. Deparei-me com uns percevejos formais um pouco mais acima. Mas eles, muito bem articulados, deixaram-me passar sem me atingir com sua saliva fétida. Acenei e servi um pouco de melado de cana e feijão.

Passei três dias escalando. O frio estava muito abaixo de zero, o ar era irrespirável. Como eu já tinha o mundo inteiro dentro dos pulmões, não foi um grande desafio pra mim. As cidades eram minúsculas manchas nervosas lá, lá, lá embaixo.

Alguns galhos mais acima, encontrei uma aeromoça chamada Ecila. "Não sou aeromoça, e sim comissária de bordo", corrigiu-me. Ela havia escapado de um avião em chamas, que caiu no mar há muito, muito tempo. Ecila é bonita e seus cabelos negros enroscam-se nos galhos como se fossem trepadeiras. Recitou-me os protocolos de vôo e recolheu-se à casa que havia montado ali, feita da casca seca de uma manga gigante. Ecila dormia de cabeça pra baixo e agarrava-se aos galhos com suas garras afiadas.Estava ali há algum tempo, penso eu, mas não me atrevi a revirar suas lembranças.

Acomodei-me em uma folha e a observei. Ela é sonâmbula! Quando tomada pelo breu da noite, cria enorme asas de besouro e percorre toda a extensão da mangueira infinita, de cima a baixo, da raiz aos galhos além-olho. Só Ecila sabe onde o infinito acaba. Ela é sábia porque se alimenta das mangas gigantes.

Ah, as mangas gigantes brotam fartamente aqui. Têm a altura de três homens e sua casca é rígida como madeira. Ecila mora dentro de uma delas, onde é quente, confortável e tem paredes doces e carnudas. O amarelo de sua polpa é tão exuberante que, em dias de sol forte, são capazes de incendiar a visão.

Quando Ecila acorda, tem vonrtade de voltar para o mundo lá embaixo, mesmo sem saber que passeia por lá todos os dias. Ecila chora, chora, chora. Agora descobri porque todo dia chove muito forte lá no morro. A chuva salgada são suas lágrimas.

Falei a Ecila de suas asas de besouro, mas ela não quis ouvir. Comemos pedaços de manga gigante e dormimos. Ela de cabeça pra baixo e eu na folha.

De manhã, Ecila estava na borda de um dos galhos, olhando pra baixo. Antes que eu pudesse dizer alguma coisa, ela saltou na esperança de que suas asas surgissem e lhe levassem com segurança até lá embaixo. Vi o seu corpo silencioso perder-se por entre as nuvens. Mal sabe ela que as asas são presente do sono. O mundo lá embaixo não tem muito a oferecer, Ecila.

De repente sinto um silêncio assombroso aqui.
Quero descer.





















16.12.02
Dormi quatro dias seguidos de boca aberta. Aspirei todo o ar antigo do porão. Certa vez uma cigana vesga, cujos cabelos tinham mais de 400 quilômetros de extensão, me disse que em cada partícula do ar há um vestígio da história do mundo. Portanto, tenho todo o universo em meus pulmões agora.

Durante o tempo em que hibernei, pequenas aranhas brancas construíram teias sedosas em minha boca, que iam dos dentes ao céu da boca. Alguns insetos inocentes se debatiam nela. Na garganta, incontáveis casulos de louva-deus. As libélulas se divertiam no estômago e no intestino. Tentei falar alguma coisa, mas o som da minha voz espantou as borboletas miúdas que se escondiam entre as gengivas. Como eu não queria que elas fossem embora, permaneci calado. Agora há vida dentro de mim.

Não estou mais só.





9.12.02
Hoje foi um dia árduo de faxina e - modéstia à parte - sou bem empenhado nesses assuntos. Fiquei feliz ao saber que a casa velha tem um grande estoque de artefatos de limpeza: vassouras, pás, aspiradores, espanadores... todos empilhados lado a lado, como se fossem cadáveres numa sala refrigerada. Mas aqui no porão faz calor e é úmido. O paraíso do mofo. Orgasmo das traças. Epifania das baratas.

Havia uma vassoura que me chamou particularmente a atenção: grande, robusta, de palha antiga, daquelas que só se via antigamente. Usei-a e fiquei satisfeito com o seu poder. Lambia o chão e o fazia lustrado. Pude ver meu rosto através da madeira opaca. Você já viu seu rosto através de uma madeira opaca? Nem tente. É terrível. As madeiras mostram como você vai ser daqui a cem anos. Todas elas. Basta forçar a vista e esperar o choque. Já estarei morto em cem anos. Queria poder viver uns oitocentos, pra poder aprender tudo pacientemente. Mas não. Devo estar embrulhado em alguns anos apenas. Sou curto. Tenho vida limitada.

Varri, lustrei, deitei no chão com o nariz pra baixo. Olhei pra vassoura. Ela mexeu! Arrastei-a comigo até o quintal e lhe fiz um agrado. Voamos. Nunca pensei em ser bruxa de fábula, mas quando desatei no ar em cima daquele objeto terrível, senti uma liberdade incrível. As trigêmeas estavam lá embaixo, espetando arame farpado em um gato recém-nascido. Sem pensar duas vezes, abri o zíper e mijei copiosamente em cima de suas três cabeças loiro-brancas. Elas choraram e engoliram minha urina corrosiva. Correram para a mãe gorda e me acusaram. Mas quando vieram tomar satisfações, eu já estava em casa, flutuando no balanço. Claro que a imaginação das crianças é fértil, dona Eronilde - expliquei. Até na hora de simular o cheiro do xixi.





6.12.02
Desde ontem estou desnorteado. O barulho dos cogumelos bagunçou minha razão. Tudo o que eu ouço é um superlativo barulho do mar. Shhhhhhhhhhhh. Zuuuuuuuuuuuummm. Tenho orelhas-conchas. Estou aguardando o momento em que as patinhas sairão dos fundos dos meu ouvidos e tentarão ganhar o mundo. Serei virado de cabeça pra baixo e dividido em dois. Duas orelhas-conchas, dois crustáceos e dois meio-corpos carregados involuntariamente. Cada um em uma direção diferente.





5.12.02
Assim que o sol caiu eles começaram a chegar. Fui lá fora ver o que se passava. Homens, mulheres, crianças e as trigêmeas berravam em frente ao meu portão. Foices, enxadas e até talheres nas mãos. Acusavam-me de proteger os cogumelos falantes que se instalaram nos galhos além-nuvens da mangueira plantada no quintal. Senti o bafo ácido do ferrugem na garganta. Queriam me ver sangrar até a morte. Ou me ver escalar os galhos infinitos da mangueira. Como tenho um relativo interesse pelo mundo, decidi subir.

Comecei a escalada às 8 da noite. Subi, subi, subi. Em três horas estava além das nuvens. Mais quatro e as nuvens já eram tufos rosados, iluminados pela neurose da cidade que ficava muito mais lá embaixo. Descansei e driblei insetos fedidos. As vozes dos cogumelos ficavam cada vez mais altas e estridentes. Mais duas horas de barulho intenso. Por instantes pensei que fosse explodir. Ora pelo ar rarefeito, ora pelo frio de temperatura negativa, ora pelo timbre dos cogumelos, que continuava a se acentuar. Passou um avião um pouco abaixo de onde eu estava. Desviou alguns galhos e continuou sua rota nos céus. Eu continuava que nem um coala agarrado aos galhos. Vozes, vozes, vozes. Eles falavam sem parar. Uma boate ensurdecedora nos céus. Lá embaixo, bem lá embaixo, a cidade, o morro, a expectativa. Mais um pouco e eu alcanço os malditos.

Dito. Feito. Agarrei o primeiro pelo talo. Todos gritavam aterrorizados, em uníssono. Vi uma pequena boca branca, enrugada, na superfície do cogumelo. Não havia dentes. Vozes desdentadas, desembestadas. Enfiei o dedo com tanta força naquela pequena boquinha persistente, que o cogumelo se amassou como um pudim. Morreu. Caiu. Calou-se. E assim foi, um a um. Uma morte lenta e propositadamente dolorosa. Moídos, caídos, calados. Vinguei-me, fiquei feliz em ter o poder da morte em minha mão. Nem que fosse para matar aqueles parasitas impertinentes. Talvez a mangueira quisesse me matar também. Bastava que para isso, abrisse mão de um dos seus galhos infinitos. Não tentaria me agarrar, não mesmo. Depois da matança, me dei ao luxo de um descanso. A cidade acordava lá embaixo. As nuvens sumiram, foram para alguma festa em outro lugar.

Estava tão alto que pude ver o mundo todo. Lá ao longe, as muralhas da China faziam um "S". Um pequeno vapor de água se debatia no horizonte. Eram as cataratas do Niágara. Vi os Montes Urais e o Everest. Havia baianas preparando alguma comida esquisita. Uma mulher nórdica quase foi atropelada na Noruega. Olhei pra cima e a mangueira ainda se estendia até onde a vista não alcançava. Deve prover frutas aos anjos e demônios que habitam o além-olho do nosso imaginário. Tentei respirar. Difícil. Rarefeito-raro efeito. Melhor descer. Aqui é mais divertido que no balanço.





1.12.02
Pintei olhos no vidro da janela para ver se consigo enxergar melhor o mundo lá fora. Mas a tinta é opaca e tudo que eu vejo é uma profusão de massa branca, veias, verde-selva e o buraco negro das minhas pupilas querendo sugar o universo para dentro de si. Os homens sobem-descem. E agora a casa tem sete olhos.