Histórias pra boi dormir




29.11.02
Sim, era ilusão. Não terei um verão sossegado. Nasceu uma colônia de cogumelos falantes em um galho tão alto da mangueira que nem se eu escalasse até o céu conseguiria alcançá-los. E como falam essas pestes! Sem parar! Sem parar! Sem parar! E não pense que é uma voz doce, ponderada. É agudo, acre, dolorido.

Malditos cogumelos! Agora onde vou arranjar uma ave-chef francesa para capturá-los? Preciso de um copo de paz.




Resolvi fazer as pazes com o balanço e ontem fui lá, encontrá-lo. Novamente sentei, fumei, mas dessa vez não olhei para o pequeno rego nem para a areia. Estava aéreo. Mirei as nuvens que passavam apressadas, como se corressem pra formar uma tempestade de última hora. Há algo de humano nas nuvens. Ou há algo de nuvem nos humanos, não sei. Elas sabem desenhar. Ou será que a gente é que sabe representar nuvens? Bom, não repare em mim hoje. As coisas estão parecidas demais esses dias...

Voltei ao balanço porque a velha finalmente resolveu desocupá-lo. Tudo bem, ela é a dona da casa, tem direito de usufruir dele. O que me incomodava era o barulho de galhos rangendo a noite toda, tentando sustentar o peso daquela mulher gorda, despenteada e desencarnada. Não sabia que fantasmas eram tão pesados. Até achava que flutuassem. Mas não, eles são quase tão físicos quanto nós. Não gostei de saber disso, porque tinha ideais felizes para minha vida post-mortem.

As trigêmeas viajaram para algum balneário de verão. Pelo menos foi o que Don'Edite me falou ontem. Vou ter um longo e quente verão sossegado. Ou será que estou me iludindo?





24.11.02
Hoje eu também ouvi violinos. Viu?




On-Off.

Off.

Desliguei-me da vida ontem, hoje, anteontem. Só o teto e o barulho do vento. Houve tiros e vi sangue correndo rua abaixo, mas foi rápido. Espiei pela janela e voltei pra cama. Pensei na dor da Alice. Aquele seu e-mail me deixou tão atordoado que nem sei como respondê-lo. Pensei em uma você imaginária, deitada. Frida Kahlo das palavras. Colhi tomates, dei algumas mangas a Don'Edite mas recusei sua visita hoje. Só o teto me interessa. Algumas aranhas avermelhadas se atrevem a montar uma teia onde meu olho paira. Vai durar pouco esse lar de seda. Tomara que elas saibam. O balanço tá lá, parado. O rego de água servida não corre porque não uso a pia para lavar roupas. Uma musiquinha triste nasce aqui perto. Tem violinos. Quem não gosta do som do violino? Som de infância, de correria, de despreocupação.





19.11.02
O Capitão Munhoz era um daqueles homens austeros, cheios de vitalidade, que exalava testosterona. Em mil novecentos e cinquenta e poucos casou-se com Dona Rita Amaral e teve quatro filhos saudáveis e robustos. Costumava ostentar medalhas de honra da marinha brasileira até quando ia comprar pão. Homem de voz forte, busto largo, barba cerrada. Todo mundo tinha medo dele. Tinha. Hoje o Capitão Munhoz é um homem minguado, magro, abatido. Chora quando alguém pergunta por Dona Rita, que morreu atropelada pelo caminhão de lixo, no ano passado.

Capitão Munhoz é maneta. Perdeu a mão quando meteu-se a operar as máquinas de um navio em uma emergência. Teve os ossos e a carne esmagados nas engrenagens. Graxa cor de púrpura, recheada de fragmentos brancos para as máquinas sedentas. Depois desse evento, aposentou-se por invalidez e veio com a mulher morar no alto do morro. Talvez pra ficar distante do mundo que o olhava decepcionado. Depressão, depressão. Tentativas vãs de suicídio. Dona Rita era muito forte, sabia domar o marido, transformá-lo num menino obediente. Mas Dona Rita se foi, carrregada pelo caminhão de lixo. Os filhos do Capitão estão ocupados em obturar dentes ou recitar palavras difíceis nos tribunais. Não lhe dão atenção. As medalhas e a alma do Capitão enferrujaram. Sua voz já não assusta, seu busto largo afrouxou e sua barba é um ninho branco de aspecto desagradável. Mora sozinho, numa casa modesta mas bem equipada. Capitão me pede sempre para dirigir seu carro, levá-lo ao centro, ao norte, à praia. Levo ao norte físico quem já nao tem norte emocional. Capitão me paga ostras, cervejas, e me distrai com suas histórias de mar, de sereias, de desastres.

Ah, as sereias...





14.11.02
Tomei um ônibus e fui até o centro. Gosto dos centros, do clima das ruas, das pessoas apressadas e dos ventos históricos que sopram por lá. Dizem os mais velhos que antes era tudo água, que era algo bonito de se ver. Daí veio um homem muito gordo morar aqui na ilha. Naquela época havia uma escassez grande de alimentos e para saciar sua fome infinita, o homem - um nobre cortês - comia tudo o que via pela frente. Gaivotas, arame, carcaças... nada escapava àquele apetite. Como resultado, passou a expelir areia. Foi essa areia que praticamente aterrou a ilha inteira, transformando-a num mini-continente. Hoje vivemos sobre um monte de bosta e entoamos cantigas bonitas sobre a beleza do lugar. Merda petrificada.

Fui na igreja. Também gosto de igrejas, dos pecados grudados na parede e das pessoas redimidas, ajoelhadas frente a entidades de gesso que guardam o segredo mais imundo dos homens.





12.11.02
Ah, antes que eu me esqueça: estou num período "coisofágico". Tenho vontade de comer qualquer coisa que me provoque alguma reação positiva.




A Don'Inspiração saiu pra passear. Não sei se volta hoje. Nem sei se volta, na verdade...




Consegui as cordas, a madeira e a coregem para subir na mangueira e instalar um balanço. Os galhos são muito altos e dispersos. Tive umas vertigens, mas consegui fazer a gambiarra. Não sei se gosto de alturas ou de arriscar tanto a minha embalagem corporal já tão detonada. Mas agora já foi. E valeu a pena. Terminei de montar o balanço às 8 da noite. Ainda tava claro. Sentei e fiquei flutuando lá até as três da manhã. Fumei, pensei, observei o vai-vém do pequeno rego de água servida que cruza o meu quintal. Depois, fiquei tanto tempo de cabeça baixa, fitando a areia escura do quintal, que hoje acordei com uma baita dor na coluna. Agora tenho um novo santuário onde dispensar minha energia: um balanço magnífico, engatado na mangueira gigante, com vista para o rego de água servida e para a areia do quintal.

Caiu uma manga na calçadinha ainda há pouco. Semi-verde. O leite escorreu por alguns minutos e ressecou rápido. O cheiro do leite da manga me faz lembrar os tempos de infância, das guerras de rua. Tô pensando em povoar o quintal com alguns patos ou com terríveis galinhas de pescoço pelado.





11.11.02
Tá, faz uma semana desde o último post. Nada de mais. Andei ocupado esses dias e tenho preguiça de conectar à internet. As paredes analógicas da minha casa tem muito mais história do que toda essa rede mundial. E os fantasmas são reais, ninguém se esconde atrás de um nick. Ei, o que estou dizendo? Eu sou o mais anônimo da internet.

Bom, vamos aos fatos que marcaram a semana: ...

Acabei de me lembrar de que nada marcou essa semana. Ocupações rotineiras apenas.

Só alguns fatos curiosos. No sábado dormi com a janela aberta. Pude ver dragões se transformarem em suculentas melancias e rostos assustados se dissolverem com o vento. Muito divertido observar as mutações das nuvens. Aqui no morro elas estão mais perto. Às vezes descem tão baixo que dá pra gente se perder no meio delas, brincar que vive em Londres. Várias vezes acordei pensando estar no meio de um incêndio, mas quando saía para verificar, percebia que era apenas uma dessas nuvens preguiçosas que preferem passar seus últimos dias aqui deitadas, observando o mundo junto com os mortais.

As trigêmeas foram à missa ontem bem cedinho. Eu estava acordado e vi. Usavam sapatos de porcelana e estavam orgulhosas disso. Caminhavam tão devagar e com tanta cautela que por um segundo até senti uma certa simpatia por aquelas três cabeças num corpo só. Infame. Elas são apenas danadas demais. Quando a breve simpatia passou, desejei que aqueles sapatos se quebrassem em mil pedaços e penetrassem na carne fina dos seus pés.

Don'Edite veio hoje cedo, como é de praxe. Trouxe roupinhas bordadas para o meu liquidificador, meu botijão de gás e minha batedeira. Na estampa, animais, flores e frutas tortas. Falei que não tinha batedeira. Don'Edite insistiu para que eu ficasse com o presente, o que fiz de bom grado. Adoro Don'Edite.




De semana em semana esse blog enche o papo...





4.11.02
Don'Edite veio aqui hoje. Trouxe um pão de milho caseiro e nata. Me fartei e até lambi os beiços. Brilho noz'olhos. Don'Edite é boa de papo. Tem um marido fuleiro, cachaceiro, e um filho homossexual daqueles que sonham em ser a Mariah Carey. Don'Edite é até bem humorada, diz que gosta de mim e me faz uns mimos vez'emquando. Don'Edite é carioca, tem uns 60 anos mas mora aqui no morro há uns 30, acho. Deve ter fundado esse cortiço aqui. Carioca gosta de morro, viu? Don'Edite me contou umas fofocas das boas, envolvendo as bruacas que são suas vizinhas. Nem pude rir direito porque tava com a boca atolada de pão e nata. Don'Edite animou minha segunda-feira morta. Don'Edite me convidou pra almoçar, mas aí achei que seria muito abuso da minha parte. Recusei educadamente. Na real, tô a fim de comer miojo mesmo. Cê já conheceu alguém que goste de miojo voluntariamente? Eu gosto. Do molho de pozinho também. Corto umas (uns?) tomates e pronto! Ceia natalina. Don'Edite, pão de milho, nata, miojo, tomate colhido do pé. É, a segunda-feira vai bem, obrigado.





1.11.02
Por que não chove? Deveria chover! O mar tá da cor do céu. Cinza e não azul. Encoberto. Daqui da minha varanda enxergo tudo. O mundo é menor do que você imagina, pode acreditar. Minha casa de madeira, meus tomates, minhas mangas, meus fantasmas e demônios. Estou obcecado pelas minhas conquistas. Só falo nisso, só vivo isso. Só tenho a eles, e eles a mim. Gosto de blogs, mas não gosto das pessoas que não falam de si. Blog é a impressa do ser. Despejos, vômitos, desejos. Vou descer pra pegar um ônibus daqui a pouco. Vou me despedir da dona da casa - a morta. Percebi que ela passa o tempo inteiro me vigiando. As trigêmeas foram embora rapidinho, não me atormentaram por muito tempo. Elas desconcertam. Eu tenho que ser gentil com as crianças? Não. Elas são umas pestes e não lamentaria se as encontrasse mortas, estendidas debaixo de um caminhão. Três cabeças e um corpo... ultrajante!




Ontem passeei a tarde inteira pelos jardins do purgatório. Colhi umas violetas desbotadas, conversei com corvos estridentes, bebi líquido amniótico e me abracei a estátuas anônimas. Não sei se isso é normal num halloween, nem quero saber. Em dias assim eu não sei o que fazer comigo durante o dia, durante a noite. Sou um caso perdido, ana t (única leitora).

Antes de dormir, vi três cabeças na janelas, soprando e desenhando no embaçado breve que ficava no vidro. São aquelas malditas trigêmeas de novo. Três cabeças embutidas num corpo só. Não sei porque elas vivem rondando a minha casa, mas se eu tivesse uma metralhadora, descarregaria inteirinha na testa delas.




Passei esses dias remontando a casa em que tô morando. Muita sujeira, muita poeira, muitos demônios escondidos debaixo da cama. Lembra do galpão que eu achei? Pois é, tô me mudando pra lá amanhã, porque tem muito mais personalidade que o meu quarto atual. E não tem janelas, o que é muito positivo. Sem falar que, se eu trancar a porta, posso passar despercebido caso um ladrão resolva invadir uma casa que não guarda nada de valor.

Mas voltemos ao porão. Quando eu tava limpando os cocôs de cachorro ressecados e tirando a poeira do armário, encontrei uma caixa velha. Tava cheia de peças de ferro retorcido, enferrujado. Ao que me parece, são (eram) peças de carro usadas. Joguei tudo fora, menos a pequena fotografia que tava dobrada junto àquele monte tralha velha. Uma menina-moça de lábios escuros. A foto é preto-e-branca, tem muito contraste, mas dá pra perceber claramente que era a antiga dona da casa. Tem uns escritos com letra rebuscada atrás, mas não dá pra entender o que é. Uma dedicatória, provavelmente. A foto tá meio desbotada, deve ter sido molhada pela mesma goteira que detonou as peças automotivas. Não sei porque venho encontrando tantos objetos que me trazem de volta ao passado dessa casa. Coisas encravadas, perdidas, soterradas vêm à tona com um simples movimento meu. Anteontem, passeando pelo quintal, resolvi colher uns tomates. Me agachei para colhê-los e, num desequilíbrio mínimo, apóio minha mão no chão. Bem em cima de um pequeno machado de cabo apodrecido e lâmina alaranjada. Melhor, mais uma ferramenta pra mim. Mas que é engraçado/estranho, isso é...

Bom, depois de colher alguns tomates pro almoço, subi no telhado pra consertar a tal goteira do porão. Encontro três dentes-de-leite pequeninos, fininhos, desgastados. Sei que existe aquela superstição que diz para as crianças jogarem seus dentinhos recém-caídos no teto para que a fada do dente possa pegá-los e trazer um novinho em folha. Tá, coitada das crianças, devem ter crescido banguelas porque a tal fada realmente não apareceu. Ou talvez eu seja a fada do dente, mas não tenho nenhum dente novinho para entregar assim, de bandeija pra alguém. Logo, procurem suas dentaduras, pobres ex-crianças ingênuas.